Aqui do prédio dá pra ter uma boa
panorâmica da cidade inteira. Quero dizer, da parte da cidade que me interessa.
A sacada fica de frente pra lagoa e, como eu moro no décimo sétimo andar, a
vista é linda. À noite, fico olhando o movimento dos carros, pela janela da
sala. Dá pra ver o parque, o pub, os bêbados. Só não consigo ver as estrelas. –
Uma pena.
Parece que foi semana passada (ou mês
passado), a polícia da cidade inteira parou o trânsito na avenida. Tinha
ambulância, paramédico e o escambau. Pelo que eu entendi, acharam um corpo. Sei
lá se foi isso mesmo ou a vizinha estava querendo apavorar sua filha mais moça.
– Sim, porque as notícias que eu tenho são de ouvir a Dona Maria tricotando com
as filhas ou brigando com a televisão. As paredes são finas.
Outro dia, apareceu um vendedor por
aqui. Sujeito simpático e bem-apessoado. Fiquei até com dó. O homem teve que
subir dezessete andares pra receber um “eu não quero comprar nada” em resposta.
– Pois é, o elevador não funciona. Nada funciona por aqui; exceto, talvez, pelo
noivo da Nina. Ê mulher que gosta das coisas!
Eu terminei de ler um livro de poesia
ontem à noite. Sentei minha cadeira de praia na varanda, fiquei olhando a lua
brilhar naquela água toda e li. Foi o tempo de fechar o livro e eu me entediei
de novo. Não tenho cabeça pra esses troços de amor e coisa-e-tal. Rumei pra
sala e abri a janela, pra ouvir o barulho da noite suburbana. – Eu gosto é da
badalação.
–
Por mais que a natureza seja linda e majestosa, com o astronauta prateado todo
cheio de si e a lagoa transmitindo paz pelo fato de não se mexer, eu ainda prefiro
a boa e velha humanidade.
O
João bateu o carro na saída do pub e, assim, salvou a minha noite. O outro
desceu e já começou a desaforar. Apontava as duas mãos para o amassado no
carro; virava pro João. Apontava para o carro de novo e colocava as mãos na cabeça.
Incrédulo e totalmente de porre. – Jurei que sairia aos socos, mas ambos
erraram quando misturaram bebida e direção. Não importa quem bateu em quem.
Hoje
à tarde, o pôr-do-sol me pareceu extremamente presunçoso. Não sei se porque meu
conhaque tinha acabado, a empregada esqueceu de comprar mais; ou porque eu
queria alguém pra beber e olhar os raios entre as árvores comigo. Só sei que
prefiro a lua ao sol. E a humanidade aos dois. – Acho que vou comprar uns
livros de poesia daquele vendedor simpático
Acordei com a campainha aos berros. Nem
sei que horas eram, mas fiquei irado. – Poderia ser cinco da tarde, isso não dá
o direito de me acordar!
Fui ver quem era. Laura. Sei não, vinte
e poucos anos, baixa. Perguntei o que ela queria e me respondeu que estava aqui
pra ficar no lugar da Ana, minha empregada. Eu já estava de mau humor, então
foi algo como: – Você tá louca, menina? Como assim ficar no lugar? Só a Ana
sabe como funcionam as coisas por aqui... Quem mandou você vir? Eu não quero,
ouviu? Não quero ninguém além dela! Passa fora.
Nada. Absolutamente nenhuma reação da
outra. Ela só concordou com a cabeça e disse que a Ana tinha morrido; que a
agência a mandara pra substituir. – Pelo visto, falaram bastante de mim, porque
outra qualquer teria saído aos prantos da minha porta. Mandei entrar e comecei
a inquisição. Laura já sabia das minhas manias, dos meus defeitos, do meu ódio
pelas pessoas. Aceitei. Era a única escolha que eu tinha, na verdade. Parecia
simpática. – Especialmente porque não falou comigo por mais que cinco minutos,
depois se pôs a procurar a vassoura e o espanador. Gostei da menina.
Ela é mais silenciosa que a Ana. Não
fica me chamando toda hora pra contar da sua vida, como a outra fazia. Dos
trinta anos que a passamos juntos, os cinco primeiros foram o inferno. Ana
falava sem parar e não me permitia ouvir meus próprios pensamentos. Fui
relevando e acabei por me acostumar. – Afinal, foram trinta anos. Agora que ela
se foi e a casa está calada de novo, eu lembrei o quanto é bom ouvir o
silêncio. – Acho que vou enjoar de tanta paz.
Eu acho que, mesmo acidentalmente,
fiquei de luto. Nem fui à sacada ver a lagoa, nem à janela ouvir os carros.
Entreguei o resto da tarde à poesia e às memórias. É engraçado como a gente
acha que nunca perderá. E vai vivendo assim (empurrando com a barriga), sem
lembrar que ninguém é eterno. – Tá sempre ali. De “tá sempre ali” em “tá sempre
ali” é que um homem deixa de dar valor a quem um dia não estará mais... aqui. E
ela não está mais.
Eu tenho meus quase cinquenta anos
(porque cinquenta-e-quatro é quase cinquenta) e ainda não aprendi a lidar com
as despedidas. Acho que nunca aprenderei. É estranho como as pessoas fazem
falta quando ausentes, mas parecem irrelevantes quando estão conosco. Se o
Homem existe há quatro bilhões de anos, há quatro bilhões de anos que ele não
valoriza os seus amados. – Pelo menos, não até que os perca.
“Já?” Foi assim que a Laura se
despediu. – Já está tudo arrumado? Já posso ir pra casa? Já quer voltar à
solidão? Já, Laura, já. Boa noite.
Ela
fala gírias que só ela entende. Usa expressões esquisitas. Mexe no cabelo a
todo instante. Eu não suporto jovens! Mas ela não canta. Não usa um aspirador
barulhento. Não me pergunta o que eu quero jantar. Não se importa.
Outro
dia, Laura me trouxe uma revista de cruzadinhas como presente. Falou que eu
tinha cara de quem-curte-essas-coisas. Ainda não sei se foi um elogio ou uma
crítica, mas agradeci e passei a folheá-la à tarde. Fácil. Tudo muito fácil.
Logo eu me vi entediado de novo e abri um conhaque. Posso? Pode o quê, guria?
Posso me servir? – Que atitude! Eu não suporto jovens! Mas permiti.
Era
meio da semana, a rua estava vazia de música e carente de bêbados. Ficamos nós
três contemplando a lagoa. Ela era quieta. Isso me irritou. – Não que eu
gostasse de barulho, mas o desinteresse dela comigo beirava a displicência.
Não
faço ideia do que aconteceu; nós estávamos conversando sobre a escola. – Aquele
maldito conhaque! Voltaram lembranças, amores, confusões, brigas e risadas...
Muitas risadas. E nós éramos duas crianças de novo. Duas tolas, inocentes e
bêbadas crianças. Não sei como aconteceu... Eu não costumo ficar bêbado com
menos de uma garrafa inteira de destilado. – Embriaguei-me de Laura.
Eu
não deixei que ela me beijasse. Por mais que seus olhos vermelhos de álcool e
alvejante pudessem me partir a alma ao meio, eu não poderia. Seria injusto com
ambos. A vontade transpassou minha garganta e foi em busca de um grito, que não
soou. Apenas virei os olhos para a lagoa negra e ali os repousei. A menina ao
meu lado se transformou em uma mulher; séria, fria, decidida. Pigarreou. Doei
minha atenção toda para a visão periférica e consegui ver Laura cerrando os
dentes, enquanto também virava a face para a água, num suspiro profundo e duro.
O
sono ébrio já me provocava e eu relaxei, meus olhos fecharam por um segundo; e
ouvi: “Eu me demito!”. Nem mesmo o susto me permitiu abrir os olhos, ela já
estava derretida sobre mim. Éramos um e sua boca era a mesma minha. – Que
atitude! Eu não suporto jovens!
Não
havia lua naquela noite, nem estrelas. Estava escuro. Ficamos juntos por alguns
minutos. E ela me libertou, de repente; com um sorriso traquinas. Eu tinha
perdido e ela sabia disso. Vangloriava-se de sua sedução. Laura sabia que tinha
ganhado. Não sei como. Só sei que prefiro a lua às estrelas. E prefiro Laura a
tudo.