domingo, 26 de agosto de 2012

O observador



         Aqui do prédio dá pra ter uma boa panorâmica da cidade inteira. Quero dizer, da parte da cidade que me interessa. A sacada fica de frente pra lagoa e, como eu moro no décimo sétimo andar, a vista é linda. À noite, fico olhando o movimento dos carros, pela janela da sala. Dá pra ver o parque, o pub, os bêbados. Só não consigo ver as estrelas. – Uma pena.
         Parece que foi semana passada (ou mês passado), a polícia da cidade inteira parou o trânsito na avenida. Tinha ambulância, paramédico e o escambau. Pelo que eu entendi, acharam um corpo. Sei lá se foi isso mesmo ou a vizinha estava querendo apavorar sua filha mais moça. – Sim, porque as notícias que eu tenho são de ouvir a Dona Maria tricotando com as filhas ou brigando com a televisão. As paredes são finas.
         Outro dia, apareceu um vendedor por aqui. Sujeito simpático e bem-apessoado. Fiquei até com dó. O homem teve que subir dezessete andares pra receber um “eu não quero comprar nada” em resposta. – Pois é, o elevador não funciona. Nada funciona por aqui; exceto, talvez, pelo noivo da Nina. Ê mulher que gosta das coisas!
         Eu terminei de ler um livro de poesia ontem à noite. Sentei minha cadeira de praia na varanda, fiquei olhando a lua brilhar naquela água toda e li. Foi o tempo de fechar o livro e eu me entediei de novo. Não tenho cabeça pra esses troços de amor e coisa-e-tal. Rumei pra sala e abri a janela, pra ouvir o barulho da noite suburbana. – Eu gosto é da badalação.
– Por mais que a natureza seja linda e majestosa, com o astronauta prateado todo cheio de si e a lagoa transmitindo paz pelo fato de não se mexer, eu ainda prefiro a boa e velha humanidade.
O João bateu o carro na saída do pub e, assim, salvou a minha noite. O outro desceu e já começou a desaforar. Apontava as duas mãos para o amassado no carro; virava pro João. Apontava para o carro de novo e colocava as mãos na cabeça. Incrédulo e totalmente de porre. – Jurei que sairia aos socos, mas ambos erraram quando misturaram bebida e direção. Não importa quem bateu em quem.
Hoje à tarde, o pôr-do-sol me pareceu extremamente presunçoso. Não sei se porque meu conhaque tinha acabado, a empregada esqueceu de comprar mais; ou porque eu queria alguém pra beber e olhar os raios entre as árvores comigo. Só sei que prefiro a lua ao sol. E a humanidade aos dois. – Acho que vou comprar uns livros de poesia daquele vendedor simpático


Acordei com a campainha aos berros. Nem sei que horas eram, mas fiquei irado. – Poderia ser cinco da tarde, isso não dá o direito de me acordar!
Fui ver quem era. Laura. Sei não, vinte e poucos anos, baixa. Perguntei o que ela queria e me respondeu que estava aqui pra ficar no lugar da Ana, minha empregada. Eu já estava de mau humor, então foi algo como: – Você tá louca, menina? Como assim ficar no lugar? Só a Ana sabe como funcionam as coisas por aqui... Quem mandou você vir? Eu não quero, ouviu? Não quero ninguém além dela! Passa fora.
Nada. Absolutamente nenhuma reação da outra. Ela só concordou com a cabeça e disse que a Ana tinha morrido; que a agência a mandara pra substituir. – Pelo visto, falaram bastante de mim, porque outra qualquer teria saído aos prantos da minha porta. Mandei entrar e comecei a inquisição. Laura já sabia das minhas manias, dos meus defeitos, do meu ódio pelas pessoas. Aceitei. Era a única escolha que eu tinha, na verdade. Parecia simpática. – Especialmente porque não falou comigo por mais que cinco minutos, depois se pôs a procurar a vassoura e o espanador. Gostei da menina.
Ela é mais silenciosa que a Ana. Não fica me chamando toda hora pra contar da sua vida, como a outra fazia. Dos trinta anos que a passamos juntos, os cinco primeiros foram o inferno. Ana falava sem parar e não me permitia ouvir meus próprios pensamentos. Fui relevando e acabei por me acostumar. – Afinal, foram trinta anos. Agora que ela se foi e a casa está calada de novo, eu lembrei o quanto é bom ouvir o silêncio. – Acho que vou enjoar de tanta paz.
Eu acho que, mesmo acidentalmente, fiquei de luto. Nem fui à sacada ver a lagoa, nem à janela ouvir os carros. Entreguei o resto da tarde à poesia e às memórias. É engraçado como a gente acha que nunca perderá. E vai vivendo assim (empurrando com a barriga), sem lembrar que ninguém é eterno. – Tá sempre ali. De “tá sempre ali” em “tá sempre ali” é que um homem deixa de dar valor a quem um dia não estará mais... aqui. E ela não está mais.
Eu tenho meus quase cinquenta anos (porque cinquenta-e-quatro é quase cinquenta) e ainda não aprendi a lidar com as despedidas. Acho que nunca aprenderei. É estranho como as pessoas fazem falta quando ausentes, mas parecem irrelevantes quando estão conosco. Se o Homem existe há quatro bilhões de anos, há quatro bilhões de anos que ele não valoriza os seus amados. – Pelo menos, não até que os perca.

“Já?” Foi assim que a Laura se despediu. – Já está tudo arrumado? Já posso ir pra casa? Já quer voltar à solidão? Já, Laura, já. Boa noite.
Ela fala gírias que só ela entende. Usa expressões esquisitas. Mexe no cabelo a todo instante. Eu não suporto jovens! Mas ela não canta. Não usa um aspirador barulhento. Não me pergunta o que eu quero jantar. Não se importa.
Outro dia, Laura me trouxe uma revista de cruzadinhas como presente. Falou que eu tinha cara de quem-curte-essas-coisas. Ainda não sei se foi um elogio ou uma crítica, mas agradeci e passei a folheá-la à tarde. Fácil. Tudo muito fácil. Logo eu me vi entediado de novo e abri um conhaque. Posso? Pode o quê, guria? Posso me servir? – Que atitude! Eu não suporto jovens! Mas permiti.
Era meio da semana, a rua estava vazia de música e carente de bêbados. Ficamos nós três contemplando a lagoa. Ela era quieta. Isso me irritou. – Não que eu gostasse de barulho, mas o desinteresse dela comigo beirava a displicência.
Não faço ideia do que aconteceu; nós estávamos conversando sobre a escola. – Aquele maldito conhaque! Voltaram lembranças, amores, confusões, brigas e risadas... Muitas risadas. E nós éramos duas crianças de novo. Duas tolas, inocentes e bêbadas crianças. Não sei como aconteceu... Eu não costumo ficar bêbado com menos de uma garrafa inteira de destilado. – Embriaguei-me de Laura.
Eu não deixei que ela me beijasse. Por mais que seus olhos vermelhos de álcool e alvejante pudessem me partir a alma ao meio, eu não poderia. Seria injusto com ambos. A vontade transpassou minha garganta e foi em busca de um grito, que não soou. Apenas virei os olhos para a lagoa negra e ali os repousei. A menina ao meu lado se transformou em uma mulher; séria, fria, decidida. Pigarreou. Doei minha atenção toda para a visão periférica e consegui ver Laura cerrando os dentes, enquanto também virava a face para a água, num suspiro profundo e duro.
O sono ébrio já me provocava e eu relaxei, meus olhos fecharam por um segundo; e ouvi: “Eu me demito!”. Nem mesmo o susto me permitiu abrir os olhos, ela já estava derretida sobre mim. Éramos um e sua boca era a mesma minha. – Que atitude! Eu não suporto jovens!
Não havia lua naquela noite, nem estrelas. Estava escuro. Ficamos juntos por alguns minutos. E ela me libertou, de repente; com um sorriso traquinas. Eu tinha perdido e ela sabia disso. Vangloriava-se de sua sedução. Laura sabia que tinha ganhado. Não sei como. Só sei que prefiro a lua às estrelas. E prefiro Laura a tudo.

Dominó


         Em frente à cafeteria Saint Louis, um jovem adulto usa seu notebook para escrever suas memórias fictícias, enquanto espera o garçom chegar com seu café quente e amargo. Uma moça aproxima-se e toca-lhe o ombro. – Oi, meu amor. – Diz André carinhosamente, mas sem tirar os olhos da tela. Ana Clara senta-se ao lado do namorado e acende um cigarro de filtro branco. – Eu sei o que você pensa sobre isso, só que não me importo. Minha vida, meus vícios... – André desliga o computador, levanta-se e tira a sua aliança do dedo, deixando-a sob a mesa. – Exatamente, Ana Clara... é a sua vida. Não a minha.
         Enquanto André distancia-se, ela olha para o anel dourado à sua frente e chora em silêncio. Alguns minutos depois, está num táxi que cheira a incenso floral e perfume barato. Perdida em ideias tristes, Ana Clara percebe que sua vida mudaria completamente. Já é noite quando ela chega a seu apartamento. Serve uma taça de vinho tinto suave e põe-se a navegar pelas salas de bate-papo online, a fim de esquecer o rompimento com André. Um nome masculino chama sua atenção e eles trocam cumprimentos. Ele é engraçado e interessante. Após algumas horas de conversa, Ana Clara resolve perguntar-lhe se Paulo é seu nome verdadeiro. À resposta positiva, segue-se a despedida. – Desculpa, Ana, mas eu tenho que dormir.
         São nove horas da manhã e Paulo dá um pulo da cama. Percebendo que se atrasaria para a importante reunião no escritório, decide dormir mais um pouco. “Quero nem saber!” – Pensou.
         Do outro lado da cidade, Jade telefona, desesperadamente, para seu chefe. “Atende, Paulo, atende!”. – Jade, os clientes estão esperando. Cadê o Paulo? – Pergunta Marcos, o diretor de criação. – Não sei, chefe! Eu sou a secretária dele, não a mãe!
         Diante da sua ausência, Marcos resolve apresentar sozinho o projeto gráfico de Paulo. Ao fim da reunião, Marcos chama Jade até sua sala.
– Conseguiu falar com o Paulo? – Diz ele, fazendo sinal para que a porta seja fechada. – Ainda não, senhor. – Então vai buscar ele, já!
         Jade pega o carro e sai dirigindo pelo centro. Porque ainda está ocupada, pensando na bronca que daria em seu chefe e amigo, acaba por não perceber o sinal vermelho. Uma moto preta atravessa à sua frente e o carro de Jade acaba parando do outro lado da avenida. Tudo fica preto e, então, branco. O cheiro de desinfetante cítrico e soro invade seus sentidos e ela acorda em um leito. O enfermeiro aproxima-se da cama e pergunta-lhe o nome, quantos anos tem e onde trabalha. – Eu sou a Jade, tenho 26 anos e acho que perdi meu emprego. E você?
Ele sorri e aponta o crachá no seu peito. – Eu sou o André, tenho 32 e perdi a namorada. – Prazer, André. – Prazer.         Em frente à cafeteria Saint Louis, um jovem adulto usa seu notebook para escrever suas memórias fictícias, enquanto espera o garçom chegar com seu café quente e amargo. Uma moça aproxima-se e toca-lhe o ombro. – Oi, meu amor. – Diz André carinhosamente, mas sem tirar os olhos da tela. Ana Clara senta-se ao lado do namorado e acende um cigarro de filtro branco. – Eu sei o que você pensa sobre isso, só que não me importo. Minha vida, meus vícios... – André desliga o computador, levanta-se e tira a sua aliança do dedo, deixando-a sob a mesa. – Exatamente, Ana Clara... é a sua vida. Não a minha.
         Enquanto André distancia-se, ela olha para o anel dourado à sua frente e chora em silêncio. Alguns minutos depois, está num táxi que cheira a incenso floral e perfume barato. Perdida em ideias tristes, Ana Clara percebe que sua vida mudaria completamente. Já é noite quando ela chega a seu apartamento. Serve uma taça de vinho tinto suave e põe-se a navegar pelas salas de bate-papo online, a fim de esquecer o rompimento com André. Um nome masculino chama sua atenção e eles trocam cumprimentos. Ele é engraçado e interessante. Após algumas horas de conversa, Ana Clara resolve perguntar-lhe se Paulo é seu nome verdadeiro. À resposta positiva, segue-se a despedida. – Desculpa, Ana, mas eu tenho que dormir.
         São nove horas da manhã e Paulo dá um pulo da cama. Percebendo que se atrasaria para a importante reunião no escritório, decide dormir mais um pouco. “Quero nem saber!” – Pensou.
         Do outro lado da cidade, Jade telefona, desesperadamente, para seu chefe. “Atende, Paulo, atende!”. – Jade, os clientes estão esperando. Cadê o Paulo? – Pergunta Marcos, o diretor de criação. – Não sei, chefe! Eu sou a secretária dele, não a mãe!
         Diante da sua ausência, Marcos resolve apresentar sozinho o projeto gráfico de Paulo. Ao fim da reunião, Marcos chama Jade até sua sala.
– Conseguiu falar com o Paulo? – Diz ele, fazendo sinal para que a porta seja fechada. – Ainda não, senhor. – Então vai buscar ele, já!
         Jade pega o carro e sai dirigindo pelo centro. Porque ainda está ocupada, pensando na bronca que daria em seu chefe e amigo, acaba por não perceber o sinal vermelho. Uma moto preta atravessa à sua frente e o carro de Jade acaba parando do outro lado da avenida. Tudo fica preto e, então, branco. O cheiro de desinfetante cítrico e soro invade seus sentidos e ela acorda em um leito. O enfermeiro aproxima-se da cama e pergunta-lhe o nome, quantos anos tem e onde trabalha. – Eu sou a Jade, tenho 26 anos e acho que perdi meu emprego. E você?
Ele sorri e aponta o crachá no seu peito. – Eu sou o André, tenho 32 e perdi a namorada. – Prazer, André. – Prazer.